terça-feira, 18 de outubro de 2022

O Tolo e a Torre

 Ola meu velho amigo. 


Te vejo novamente entre os sussuros da noite. Tu me diz "bebe" e eu obedeço sem muita luta. O calice que tu me entregas tem gosto de sangue, mas não hesito. Te recebo como um velho amigo, como um irmão. Te vejo vestido de branco ao meu lado. Olhando para uma direção oposta. 

Quando me vejo, tu não está mais lá, mas escuto seu riso de escárnio. "Tanta luta, tanta distancia percorrida".  Ainda estou no mesmo lugar. 

Andei e andei e corri e caí. Não será esse o segredo da vida?

Uma grande repetição que só os tolos parecem perceber. Uma verdade (são só mentiras disfarçadas). Cada palavra. Cada promessa. Cada apreço. 

O fogo sobe pelas minhas mãos. Sua mão entre as minhas. Mas ainda continuo só. 

Sinto o vento gelado entrando pela janela, trazendo lembranças. Lembro do coringa que nunca pertenceu. Nunca dançou a dança de seus companheiros. Sempre só. Sempre livre. 

A promessa de cortar todas essas ilusões, não passou de mais uma ilusão. Não passou de mais um engano. Uma mentira. Uma promessa feita ao vento. 

Anos e mais anos e ainda não sei quem sou. O que sou. O que me tornei?

Minha voz falha, a rouquidão de uma vida de engolir meus próprios sentimentos. Um sufocamento que só quem voou muito perto do sol sente. 

Mas o sol se desfigura. Não passava de uma mentira. Nunca esteve perto. Sempre esteve no mesmo lugar. Inalcançavel. 

Ja desisti há muito tempo, isso são só lembranças de um outro tempo. A noite gélida e a solidão me fazem pensar nisso. Não há ação mais a ser feita. 

O caminho para a felicidade tu conheces muito bem. Só se recusas a andar por ele. 

Por medo de abandonar aquilo que passou anos conhecendo. 

Estaria eu louco? Enlouquecendo? Quem é são o suficiente para dizer? 

Quanto mais o tempo passa, mais vejo pessoas percorrendo o mesmo caminho. Pessoas se perdendo. E minha cabeça gira e tudo parece enevoado. Você aparece novamente, segura minha mão. Você que caminhou comigo quando todos me abandonaram. Meu eu feito de sombras. Que cuida de mim. Que diz chega. Que diz que nada vai ficar bem, mas que tudo bem ser assim. Tudo bem porque você vai sobreviver. Você vai absorver isso tudo. Você é a luz e eu sou a sombra que sua luz deixa por entre os escombros do que você deixou pra traz. 

Eu sigo ao seu lado. Eu continuo a te observar. Sei que tu me conheces melhor agora. 

Não temo sua companhia, por isso te recebo. Te saúdo. Te abraço. 

Estaremos nós dois juntos até o fim. Seja o vento que soprar. Seja a chuva. Seja o sol. 

A solidão se esvai porque nunca estive sozinho. 

Hoje a noite é sua. Talvez o dia também. 

Aproveite seu tempo. Estarei aqui quando se cansar. 

Nossos dias preso naquela torre já se foram. É tempo de caminhar de mãos dadas pelos campos.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Duas velas

O fogo de duas velas queima enquanto escrevo essas palavras. O ardor esquenta e deixa um leve aroma de fogo pelo ambiente. A leve penumbra se mistura com o gosto de cigarro. Uma dor que há muito me era como um estranho caminhando por uma rua deserta pela madrugada. A busca por uma esperança que parece me escapar pelos dedos. Uma força imensa em esticar e buscar com todos os meus arrepios. Uma energia que me é tão familiar. Uma dor que não sei se é minha ou se é sua. 
Despistei meu eu do passado por muitos anos, mas o revivi essas noites. Trouxe de volta, como um velho amigo que me traz um mal presságio. 
Desvendo todas as partes desse ser, sento com ele cada noite vazia. Brinco de xadrez mental com esse visitante, mas cada movimento sinto que estou cometendo um erro. 
Quando pressinto a vitória, um vento bate forte e muda as peças de lugar. (que erro, onde estava ?) 
As peças se desfiguram e se tornam palavras (abandone as esperanças!)
Algo em mim ainda cisma em acreditar.
Algo em mim ainda quer ver a luz por detrás dessa escuridão (não haveria de vê-la? basta olhar mais perto)
Queria poder quebrar esse vidro. Essa areia que cai e me afoga. O tempo que se foi e que se vai. 
Algo em mim grita. Coloco-me a andar. (em busca do que?) 
uma visão, um sussurro, um carro no meio da noite
Mas ah, como todas as vezes, me perco por essas ruas. Esses rostos que me olham e me julgam e me condenam. 
Como pode ser? Que aquilo que tanto me dói está cravado no fundo do coração dessa pessoa.
E não vejo como me aproximar sem me machucar. (essa dor é sua)
Mas ah, como todas as vezes, insisto em destruir. O caos me embebeda em busca de uma ajuda. (se eu já caminhei por esse labirinto, por que não me segues?)
Não é tão simples. Não achei saída, mas achei paz. Busquei a felicidade na jornada e encontrei um amor que há muito me faltava (não você)
Queria te levar comigo, mas é um convite que não faço em voz alta (talvez por já saber a resposta)
Não quero fugir mais. Eu sei quem eu sou. Eu sei de onde eu vim. Eu me lembro. (não consigo esquecer)
E essas dores cristalizaram em mim, mas queimam com seu olhar. Queimam com sua voz. Queimam com seu toque. 
Eu quero transformar o amargo em doce. Eu quero beber dessa água suja para que tu possa bebe-la límpida.
Não posso querer tanto, posso? (quem sou eu pra guiar alguém)
Mas algo me diz, algo vibra em mim, meu corpo se move sem minha permissão. Minha voz sai falhada. Sinto que se não me segurar, meu corpo flutuaria em sua direção.
A verdade é que eu não sei mais o que fazer (e há algo a ser feito?)
O ser soturno do passado tenta me abrir os olhos (não há luz adiante)
Mas como posso confiar? Como posso confiar em quem me enforcou. Como posso ter que escolher a espada que me atravessará, quando o que mais quero é te abraçar. 
Pois eu perdi o medo há muito tempo. Essas sombras não me apavoram mais. Essa imensidão de "quases", fiz dela minha cama. 
Se queres ir, vá. Não se demore aqui. Estou bem comigo mesmo. 
Mas se quiser ficar, vai ter que acertar o passo. Não te sigo para a perdição. 
Alçamos voo para o sol. De inverno já basta tudo que abandonei. 
Não quero mais dor. Não quero mais pesadelos.
As velas estão quase se apagando. Qual delas se apagará primeiro? 


sábado, 25 de dezembro de 2021

Natal

 É natal. E você não está com a gente. O que mais me dói é o silencio. Ouvi sua voz hoje e me virei. Podia jurar que estava a me chamar para jantar, mas como muitas vezes não ouvi. Me dói o pesar, me dói o pensar. Me dói sentir o mundo desabando e a sua voz antes tão calma e sempre alegre. No lugar o silêncio. Parte de mim sempre soube que isso ia acontecer um dia. Não o torna menos doloroso. Queria poder esquecer, mas parte de mim quer lembrar pra sempre. E sempre estará lá. Porque não desaparece. Você continua em mim. No meu pensar. No meu amar. No meu ser. No meu existir. Me dói não te ter aqui. Me dói não ter te tido mais perto. Voltei para onde tu sempre me chamava e encontrei um vazio. Um vazio que você sentia, quando me mandava uma simples mensagem e eu não respondia. Hoje é a minha vez de perguntar "Como você está? Está tudo bem por ai? Me responda" e só receber o silêncio. 

Gostaria de poder voltar. Te abraçar. Te beijar. Te dizer que você foi sem sombra de duvida a única mulher que já amei nessa vida. E dói. Continua a doer. Continua pesando. Por mais que os dias passem. Por mais que por minutos, horas, dias eu me distraia. Você volta e me abraça com sua saudade. E eu quero ela. Eu desejo ela. Eu quero que esse sentimento perdure, porque pra mim ele é você. A certeza de que você está perto. A certeza de que tu está bem. 

Esse natal foi frio e vazio. Não posso negar. A falta aperta o coração. Queria mais uma ver te ouvir, te ver, sentir seu cheiro, te tocar e te dizer que eu te amo muito mais do que você imaginou. Mas dói. Continua doendo. 

Não sei até quando. Acho que é a dor que terei que carregar. O natal não é mais o mesmo. Eu não sou mais o mesmo. A única coisa que não mudou é o quanto eu amo você. 

Espero que hoje tu entenda. Tudo que eu passei e tudo que eu suportei. De amor nunca foi falta. Foi só medo e insegurança. Foi só fraqueza. Me desculpa por tudo. 

Do amor mais sincero que qualquer um possa ter. 

Te amo pra sempre mãe. 

domingo, 15 de dezembro de 2019

Caos

Todas essas vidas passam pelos meus olhos em um segundo. Não sei quem são. Serão minhas? Um choro de desespero, tudo que não vivi. O passado parece eterno, petrificado. Algo me diz que ele é vivo.
Tento lembrar da minha vida e ela se perde. Sou um novo eu, mas quem eu era? Não sei mais.
Aprofundo essa dor e ela me é familiar, mas não sei de onde vem.
O passado parece vivo. Constantemente mudando, se contorcendo. Memórias de uma vida que não é minha. Meu peito se fecha de dor e tudo que eu nunca vivi parece tão claro.
As escolhas, as mudanças, os arrependimentos. Cada ponto da minha vida que parecem ter me trazido aqui. Cada curva onde eu me perdi. A vastidão de possibilidades me deixa triste.

Eu sou quem eu sou por quem eu era. Se quem eu era fosse diferente, seria eu o que sou? E se eu resolvesse mudar? E se eu pudesse mudar o passado? O meu eu seria quem?

Com quem converso todas as noites? Quem eu abraço até dormir chorando enquanto essas memórias fluem pelo meu coração?

Por que eu sinto que estou numa competição comigo mesmo? Eu queria respostas. Eu queria uma verdade, mas a verdade é o que eu luto constantemente para não enxergar, por que ela, no fim, vai me destruir e me deixar a deriva em um caos interminável

Não me leve a mal, eu conheço esse caos. Eu amei esse caos. Eu vivi.

A vontade que a vida tem, o eu de agora que quer viver e viver e reviver. Até esgotar todas as possibilidades, mas a verdade é que eu não vivo. Eu travo. Eu me sinto preso. Preso em mim mesmo, preso na minha história. Preso nesse mar de verdades que eu crio para me divertir. Nessas memórias que não existem, mas que poderiam existir se eu simplesmente fosse capaz de viver.

Mas eu não vivo. Eu existo. Eu sou.

Caos

segunda-feira, 18 de março de 2019

Prólogo

Sento-me novamente em frente a essa tela e me parece um mundo completamente estranho. Faz tempo que não mergulho novamente nessas águas. Não sentia necessidade. Minhas trevas, meu passado, todas as minhas sombras, parecem fazer parte de mim. Carrego-as para os lugares e nos sentamos no banco de uma praça mal iluminada e conversamos como velhos amigos presos numa história que ninguém vai ler.
Substitui essa tela por novos vícios. Substitui minhas paranóias pelo simples fechar de uma porta. Olho para o passado como quem olha para um livro terminado, empoeirado em uma prateleira. Nunca julgado, mas simplesmente estático, imutável, uma lembrança que não abro mais. Não por medo ou dor ou amargura, mas pela sensação de que não há mais necessidade de abrir. 
Ao mesmo tempo, vejo uma nova história se iniciando. Um novo ciclo subindo no horizonte. A sensação de terror me acomete aos poucos, mas logo me lembro de tudo que me trouxe até aqui. Não sei o que o futuro me espera. Não sei o que a esperança me trará, se é que trará algo. Durmo mal a noite, acordo cansado, preso e estagnado, mas a sensação de rompimento é real. 
Um novo livro está se iniciando. Até novos personagens aos poucos vão se apresentando. Iniciam um musical em minha mente, mas estão quase inaudíveis. 
Canta e ri e pula e tropeça. O bobo da corte pressagia um novo conto. Uma nova tragédia. Uma nova comédia. 
Talvez por isso esteja aqui de novo. Talvez por isso esteja com essas palavras me inundando. 
Sinto um desejo dentro de mim. 
E o horizonte de repente parece um pouco menos distante. 
Comecemos

domingo, 26 de agosto de 2018

Carta para o passado

Ola Sérgio,

como você está? eu sei que está bem. Um pouco assustado. Eu sei que tu és feliz demais nesse momento, feliz do seu próprio jeito. Eu sei que muitos não te entendem, ou tentam te compreender. Seus pais não te entendem nem um pouco. Eles acham que tem algo de errado com você e acredite, isso não vai passar tão rápido. Ainda hoje é difícil conviver com eles sem me sentir pequeno. Sem me sentir como você provavelmente está se sentindo agora. É difícil. Queria poder te dizer algumas palavras que você sempre precisou escutar, mas que nunca te disseram. Não há nada de errado em ser você. Você é feliz, você é uma pessoa maravilhosa, que tem uma capacidade de sonhar, de escrever, de criar, de aprender e o mais importante de entender com facilidade as pessoas ao seu redor. A vida tem muito dessas ironias poéticas, você vai se acostumar com isso no futuro. O menino que não se sente nem um pouco compreendido, consegue praticar uma empatia enorme com todas as pessoas. Relaxa, isso não é um defeito. É uma qualidade muito boa. Porém preciso te avisar com urgência. Você se sente incompreendido, mas por favor, não desista de se abrir pro mundo. É muito fácil desistir, se fechar, sumir, se esconder. E acredite tu tens muitos motivos para sumir, para viver mentiras. Você mente muito bem, esconde muito bem. Mas por favor, não deixe de se abrir. Se mostrar. Ser você mesmo. Deixe as pessoas entrarem. Deixe elas te conhecerem. Você é brincalhão, chato, inteligente, desajeitado, mas você gosta muito de abraços. Por favor, abrace mais as pessoas. Abrace quem você ama, abrace seus amigos, seja essa pessoa carinhosa que eu sei que tu tenta sempre ser. Muitos não vão sentir o seu amor, porque você não consegue expressar. É difícil, você procurar as palavras certas, só pra não conseguir dize-las. Mas diga! Diga varias vezes. Diga o quanto as pessoas são importante pra você. E por favor. Não tenha medo. Acredite, eu entendo o porquê de você se sentir vigiado o tempo todo. Você vive uma peça, um teatro. Decora falas, e quando todo mundo olha pra ti, você encena. Abrem-se as cortinas e tudo some de vista. Mas vez ou outra alguém da plateia levanta, e aponta, e grita, "diga a verdade" e você congela. Aprenda a dizer essa verdade o quanto antes. A aceitar essa verdade. Porque não há nada de errado com você. Você é muito especial. Mesmo. E tem um carinho enorme dentro de você querendo sair. Querendo criar conexões. Querendo amigos. Querendo ser visto. Mas ser visto é diferente de ser vigiado. Nem todo mundo está te olhando pra te julgar. Nem todo mundo quer que você seja perfeito. E ja te adianto, tu nunca vai ser perfeito! Tu vais cometer erros, tu vais fazer pessoas chorarem, tu vais trair a confiança de amigos, tu vais fazer sua mãe chorar. E isso é o que basta. Mas por favor, quando essas coisas acontecerem. Abrace essas pessoas, diga que as ama. SEJA VOCÊ! Seja quem você tanto quer ser, mas tem vergonha.
A professora que te traiu aquele dia, perdoe-a. E se perdoe por falhar. Se perdoe por não ter entendido, não ter tido a coragem. Mas ao mesmo tempo arrisque! Cante aquela canção. Deixe que seus colegas de tantos anos escutem sua voz. Eles gostam de ti, mesmo que tu não enxergue ainda.
A sua mãe que sempre te vigia. Que sempre quer o que acha que é melhor para você. Perdoe ela por esse descontrole. Ela tem os motivos dela, e acredite tu vai entender eles muito bem. Mas por favor, se aproxime dela. Abrace ela e ame ela. Ela precisa disso pra te entender.
Seu pai, que nunca sabe o que fazer pra se expressar. Mas ele te ama muito, ele te bota pressiona pra seguir em frente. Mas acredite, ele se preocupa bastante contigo.
Seu irmão que definitivamente não te entende. Tu vai odiar muito ele por diversos motivos. Sei que hoje em dia ele brinca sempre contigo, ele conversa com você e te abraça. Mas ele vai se tornar uma pessoa bastante diferente. Ele vai cometer muitos erros, e causar bastante caos na família. Por favor, tente entende-lo mais. Ele é uma das pessoas que vai te aceitar do jeito que é. Mas tu precisa ser capaz de ser esse Sérgio para que ele te conheça.
No mais tu vai fazer muitos amigos, e acredite, eles vão te amar do seu jeitinho. Do seu jeito estranho, quieto, brincalhão. Por isso deixe que eles entrem. Deixe que eles te vejam. Deixe o mundo entrar. E quem não te entender, perdoe. Deixe essa vigilância acabar. Deixe esses olhares pra trás. Você merece ser feliz do jeito que é. Arriscar as coisas do seu jeito. Fazer as coisas do seu jeito. Não se esconda. Não se silencie.
É muito fácil deixar o engano e a incompreensão prevalecerem. Mas não fique quieto. Mostre quem você é.
As pessoas vão continuar contigo. E quem não continuar, acredite, é melhor assim.
Espero que essa cartinha chegue bem a você. E que tu saiba que tem alguém aqui no futuro que te entende. Que te ama, e que está tentando muito forte te ajudar. Por isso seja corajoso.
Perdoe, abrace, ame, seja.

Do seu mais futuro eu,

Sérgio

terça-feira, 4 de julho de 2017

A Sombra

Parece que faz muito tempo. Os dias correm rapido. Quando me dou por mim o momento já passou. Não acho ruim. Ao contrário, me sinto bem. Ouso me sentir bem e ouso me sentir feliz. Como quem passa dias e meses numa dieta e finalmente pode degustar a vontade. A luz e a sombra. Como irmãs. Como que de mãos dadas. Aprendendo a se aturar e a serem amigas.
Concentro-me no passado e o presente se abre. Como uma tela que um dia comecei a pintar, mas parei. Retiro-a daquele velho armario empoeirado e noto os contrastes. Aquela criança que um dia desenhou mas esqueceu de pintar.
Aquele borrão de tinta preta que me fez desistir um dia. Que me fez odiar essa tela com uma força tremenda, que esqueci o desenho inicial. Com força a atirei pelas escadas, como quem quer esquecer.
Fugi de mim mesmo. Aquele desenho de um ser que hoje me parece cada vez mais eu.
Eu no escuro. Eu sozinho. Eu sem mais ninguem. O mais puro eu.
Jogado, manchado, empoeirado.
Não sei como ele foi parar nesse armario, sem luz, sem ar, com medo. Odiando quem o trancou ali e sem poder falar, sem poder gritar, sem poder respirar.
Parece que esqueci de mim mesmo. Por muito tempo. Passei a pintar telas disformes. Nunca completas. Sempre inacabadas. Sempre quases.
E aquele sentimento de que é assim que o mundo é. De que nada há de se fazer.
Procuro entender porque elas nunca tem fim. O que falta nesses retratos de cores psicodelicas. De cores e mais cores e mais cores.
Esses borrões de tinta que nada parecem fazer sentido. Que nada desenham e que nada significam.
Como se toda noite ao apagar as luzes, essas mesmas telas mudassem. Se embaralhassem. Transfigurassem em algo horrivel, com cheiro de sangue.
A mais bela tela que pintei. Manchada por sangue e cigarro. Por dor. Por tristeza. Por solidão.
Aquele velho azul marinho misturado com um raio de sol vermelho. (O que falta?)
Quando chego perto. Quando parece pronto. Quando parece certo.
A tela novamente se transfigura. Num homem. Enforcado. Enforcado por si mesmo.
E quem pintou essa tela? Quem difamou algo tão belo?
Não me canso. Tranco a porta desse quarto. Não vou sair até obter respostas.
E escuto um choro. Um murmuru. Quase como uma canção, tentando chegar perto, tentando se aproximar.
Um quadro no escuro, esquecido, manchado.
O primeiro quase. O primeiro interminável.
Aquele que me bloqueia e que me impede.
Aquele auto retrato em preto e branco. Que tanto odiei devido à esses tons de cinza.
Observo o quadro como quem tenta se lembrar o que estava sendo desenhado. (E quem o desenhara?)
Tantas cores vieram depois. Tantas combinações.
Mas a sombra que trazia profundidade. A luz e o brilho por dentre as nuvens carregadas de chuva. Os raios de sol perfurando o celeste. E as estrelas surgindo no oposto.
Mas falta algo. O interminavel quadro.
Parece que esqueci como pintar. Todas as cores que usei, se tornaram negras como petroleo.
Um sussurro no ouvido me diz "é essa a cor que tu precisas. Pinte"
E me ponho a pintar.
A sombra parece rasgar o quadro e o negro parece ter um brilho azulado, forte, impenetravel.
Como quem revela uma figura que finalmente parecia trazer luz ao que um dia fora desenhado.
Continuo com força. Com fé. Com um sentimento de plenitude.
E aos poucos o quadro vai tomando forma.
Aos poucos aquele negro mostra que é muito mais do que um. É sim o todo.É sim tudo. É sim parte do quadro.
E o quarto se incendeia. Brilha.
E aquela imagem do menino de anos atras aparece. Com medo. Com raiva. Querendo um lugar no mundo. Abandonado por todos e por mim.
Uma sensação de tremor me acomete.
Sinto que dei um passo. A primeira cor. A cor que sempre esteve faltando.
O quadro ainda não está pronto.
Mas sei que ele vai ser minha obra prima.
E todos os outros renegados, abandonados.
Terão uma nova forma e uma nova luz.
E uma nova sombra.