domingo, 3 de novembro de 2024

Confissões

Há anos que eu não escrevo.  Gostaria de pensar que é porque eu não tinha mais tanta coisa para botar em palavras. Escrever sempre foi uma forma de tirar algo do meu coração, colocar em palavras e conseguir retirar da minha cabeça. Com as palavras eu conseguia amenizar uma dor que eu carregava e me ajudou por muito tempo a me entender e refletir sobre quem eu sou. Tentar comunicar o incomunicável. Uma brecha nas paredes do meu ser por onde vazavam resquícios de meu verdadeiro eu. Nunca pretendi que essas palavras fossem lidas por outras pessoas, apesar de em algums momentos eu ter compartilhado com algumas poucas que considerava dignas. 
A verdade é que escrever é um grito por socorro. Uma carta aos desinteressados. Uma súplica para alguem que tenha coragem o suficiente de olhar para essa criatura estranha que escreve.
Sempre fui um garoto diferente. Não me sentia parte de nada e passava muito tempo dentro da minha cabeça. Me isolava do mundo e vivia em meus sonhos, onde tudo ia dar certo. Vivia num futuro que não importava se seria real. Construía relacionamentos que nunca iriam acontecer. Tive horas, dias, meses de conversas com pessoas que nunca trocaria uma palavra em voz alta.
O tempo não é nosso amigo. O tempo é carrasco. O tempo não se importa. 
Quando me vi com mais de 30 anos e uma vida que passei num sono profundo, não sinto coragem de acordar. Tenho medo de ser quem eu sou, por isso fujo pra ser alguem que eu gostaria que fosse. Não preciso dizer que quem passa maior parte do tempo em sua própria mente, acaba por não viver nada. 
Tenho uma vida que não é minha. Uma voz que não reconheço. Uma face no espelho que evito olhar por tempo demais. 
Quando parei de escrever, achei que estava me curando dessas dores. Acordando para um eu que poderia se apresentar pro mundo. Que criaria conexões e histórias reais. 
Não é verdade. Era uma fuga mais profunda do que eu jamais alcancei. Me afundei tanto que parei de sonhar. Calaram-se as vozes da minha mente e tudo que sobrou era uma casca vazia e sem nada de real. Ainda tento aos poucos desamassar e desdobrar esse emaranhado labiríntico que se tornou minha alma. Não é fácil. 
Resolvi escrever essa confissão, para tentar abrir as portas do meu coração novamente. Tentar novamente me descobrir. Acordar de verdade. Viver a vida que eu sinto que devo viver. 
Ainda não sei como. Não sei qual caminho percorrer. 
O mundo durante uma pandemia trouxe perdas para todos. Para mim veio na forma da minha mãe. Perdi minha mãe e um vazio tomou conta do espaço em que ela preenchia. Descobri depois de muito tempo que parte de mim se foi junto, enquanto parte de mim lutou para mante-la viva. A voz da minha mente tomou forma da voz dela (ou será que sempre foi?) e quando me vi afundando, tive que mata-la de novo. Hoje tenho que mata-la todos os dias. É uma dor que não passa, mas deixar isso me consumir é pior do que a alternativa. 
Mata-la significa destruir uma parte de mim. Uma parte que me prende. E nem todo dia eu consigo. Crescer como um menino que desaparecia para dar espaço para os sonhos de outros é um treinamento que é dificil de desaprender. Não gosto de pensar nisso, mas preciso. Expor isso em palavras é um ato de luta. 
Cada palavra é uma faca que crava mais fundo em mim mesmo. 
Ainda assim, é preciso. 
Eu quero achar as palavras certas, que podem transformar essa dor toda em algo melhor. Que possa afrouxar essas correntes que me sufocam. 
Parte de mim quer gritar para o mundo, dizer "olhem para mim". Mas eu ainda sumo. Desapareço em mim mesmo. Me escondo de todos os olhares. Não sei falar. Não sei conviver. Não sei expressar o que sinto. Não sei ser humano. 
Sou uma casca que vive uma vida observando a vida que levo. Tomando decisões que não são decisões. Acreditando que um dia os sonhos de criança virarão realidade.
Não vão. 
Tudo se perdeu. O tempo passou. A roda girou. Só me resta juntar os pedaços. 
O quanto de mim sobrou? Não sei dizer. 
Queria ter respostas. Queria que alguem me contasse. 
Mas só sei que estou muito longe ainda.
Palavras ditas para o vazio, não mudam nada.
Palavras que vivem presas na minha cabeça, nunca são ditas de verdade.
Não posso mais viver assim. 
Não quero mais viver assim. 
Quero que leiam o que eu escrevo. Quero que saibam de toda a dor, do tanto que lutei. Quero que saibam das lagrimas que chorei. Do quanto meu corpo treme quando alguem me direciona a palavra. Do quanto eu passo horas do meu dia repassando cenários na minha cabeça para prever o que vou dizer caso alguem fale comigo. Como eu me esforço para ser uma pessoa fictícia. Uma pessoa treinada. Uma pessoa que não é uma pessoa. 
Sou o que fizeram de mim e sou o que me tornei. 
Sou todos meus erros e meus acertos. 
E quero que todos saibam que sou um garoto que escreve palavras pra ninguem ler.