Parece que faz muito tempo. Os dias correm rapido. Quando me dou por mim o momento já passou. Não acho ruim. Ao contrário, me sinto bem. Ouso me sentir bem e ouso me sentir feliz. Como quem passa dias e meses numa dieta e finalmente pode degustar a vontade. A luz e a sombra. Como irmãs. Como que de mãos dadas. Aprendendo a se aturar e a serem amigas.
Concentro-me no passado e o presente se abre. Como uma tela que um dia comecei a pintar, mas parei. Retiro-a daquele velho armario empoeirado e noto os contrastes. Aquela criança que um dia desenhou mas esqueceu de pintar.
Aquele borrão de tinta preta que me fez desistir um dia. Que me fez odiar essa tela com uma força tremenda, que esqueci o desenho inicial. Com força a atirei pelas escadas, como quem quer esquecer.
Fugi de mim mesmo. Aquele desenho de um ser que hoje me parece cada vez mais eu.
Eu no escuro. Eu sozinho. Eu sem mais ninguem. O mais puro eu.
Jogado, manchado, empoeirado.
Não sei como ele foi parar nesse armario, sem luz, sem ar, com medo. Odiando quem o trancou ali e sem poder falar, sem poder gritar, sem poder respirar.
Parece que esqueci de mim mesmo. Por muito tempo. Passei a pintar telas disformes. Nunca completas. Sempre inacabadas. Sempre quases.
E aquele sentimento de que é assim que o mundo é. De que nada há de se fazer.
Procuro entender porque elas nunca tem fim. O que falta nesses retratos de cores psicodelicas. De cores e mais cores e mais cores.
Esses borrões de tinta que nada parecem fazer sentido. Que nada desenham e que nada significam.
Como se toda noite ao apagar as luzes, essas mesmas telas mudassem. Se embaralhassem. Transfigurassem em algo horrivel, com cheiro de sangue.
A mais bela tela que pintei. Manchada por sangue e cigarro. Por dor. Por tristeza. Por solidão.
Aquele velho azul marinho misturado com um raio de sol vermelho. (O que falta?)
Quando chego perto. Quando parece pronto. Quando parece certo.
A tela novamente se transfigura. Num homem. Enforcado. Enforcado por si mesmo.
E quem pintou essa tela? Quem difamou algo tão belo?
Não me canso. Tranco a porta desse quarto. Não vou sair até obter respostas.
E escuto um choro. Um murmuru. Quase como uma canção, tentando chegar perto, tentando se aproximar.
Um quadro no escuro, esquecido, manchado.
O primeiro quase. O primeiro interminável.
Aquele que me bloqueia e que me impede.
Aquele auto retrato em preto e branco. Que tanto odiei devido à esses tons de cinza.
Observo o quadro como quem tenta se lembrar o que estava sendo desenhado. (E quem o desenhara?)
Tantas cores vieram depois. Tantas combinações.
Mas a sombra que trazia profundidade. A luz e o brilho por dentre as nuvens carregadas de chuva. Os raios de sol perfurando o celeste. E as estrelas surgindo no oposto.
Mas falta algo. O interminavel quadro.
Parece que esqueci como pintar. Todas as cores que usei, se tornaram negras como petroleo.
Um sussurro no ouvido me diz "é essa a cor que tu precisas. Pinte"
E me ponho a pintar.
A sombra parece rasgar o quadro e o negro parece ter um brilho azulado, forte, impenetravel.
Como quem revela uma figura que finalmente parecia trazer luz ao que um dia fora desenhado.
Continuo com força. Com fé. Com um sentimento de plenitude.
E aos poucos o quadro vai tomando forma.
Aos poucos aquele negro mostra que é muito mais do que um. É sim o todo.É sim tudo. É sim parte do quadro.
E o quarto se incendeia. Brilha.
E aquela imagem do menino de anos atras aparece. Com medo. Com raiva. Querendo um lugar no mundo. Abandonado por todos e por mim.
Uma sensação de tremor me acomete.
Sinto que dei um passo. A primeira cor. A cor que sempre esteve faltando.
O quadro ainda não está pronto.
Mas sei que ele vai ser minha obra prima.
E todos os outros renegados, abandonados.
Terão uma nova forma e uma nova luz.
E uma nova sombra.
Um comentário:
A descrição de um parto. Com todas suas contrações, nuances lágrimas suor e risos. Maravilhoso texto de uma alma renascendo. Emocionante cheio de verdade e poesia.
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